O que é revista íntima?
Segundo a Resolução nº 9/2006 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, a revista íntima é conceituada como “inspeção que se efetua, com fins de segurança, por meios eletrônicos e/ou manuais, em pessoas que, na qualidade de visitantes, servidores ou prestadores de serviço, ingressem nos estabelecimentos penais”
Também chamada de revista vexatória, a prática é assim denominada devido seus métodos serem intrinsecamente humilhantes, constituindo procedimento impactante e invasivo pela qual, supostamente, se busca impedir a entrada de correspondências indevidas, dispositivos eletrônicos, aparelhos celulares, entorpecentes, explosivos, armas de fogo e quaisquer itens não permitidos nas instituições de privação de liberdade.
Entretanto, em estudo da Rede de Justiça Criminal, apontou-se que 0,03% das visitas foram flagradas tentando ingressar no presídio com algo escondido no corpo, o que representa três em cada 10 mil pessoas, enquanto 3,5 milhões de pessoas foram submetidas à sua prática.
A Resolução n.º 09/2006/CNPCP determina que:
Art. 2º A revista manual só se efetuará em caráter excepcional, ou seja, quando houver fundada suspeita de que o revistando é portador de objeto ou substância proibidos legalmente e/ou que venham a pôr em risco a segurança do estabelecimento.
Parágrafo único. A fundada suspeita deverá ter caráter objetivo, diante de fato identificado e de reconhecida procedência, registrado pela administração, em livro próprio e assinado pelo revistado.
Art. 3º A revista manual deverá preservar a honra e a dignidade do revistando e efetuar-se-á em local reservado.
Art. 4º A revista manual será efetuada por servidor habilitado, do mesmo sexo do revistando.
Ainda em 1996, no Relatório Anual n.º 38 do Caso n.º 10.506 da Argentina, a CIDH esclareceu que os visitantes ou membros da família do preso não devem ser automaticamente considerados suspeitos de ato ilícito, não sendo legítimo, de início, sujeitá-los à revista íntima. Nos casos excepcionais, para estabelecer a legitimidade de uma revista ou inspeção vaginal seria necessário observar os seguintes requisitos: 1. deve ser absolutamente necessária para alcançar o objetivo legítimo no caso específico; 2. não deve existir nenhuma medida alternativa; 3. deveria, em princípio, ser autorizada por mandado judicial; e 4. deve ser realizada unicamente por profissionais da saúde. Já a CorteIDH no caso Presídio Miguel Castro-Castro v. Peru (2006), estabeleceu que inspeções vaginais realizadas em visitantes femininas, na completa ausência de regulamentação, por policiais em vez de profissionais da saúde, e como primeira medida e não como último recurso, constituem violência contra as mulheres.
No entanto, em dias de visita, a exceção é corriqueiramente substituída pela imposição direta da busca corporal e uma vez não estabelecidos os limites da revista manual pela legislação, possibilita-se que em algumas ocasiões o agente efetue uma intervenção no corpo revistado, tocando-o em partes íntimas, cometendo excessos e arbitrariedades.
Em estudo realizado pela Rede de Justiça Criminal (RJC), foi apontado que no Brasil, ainda em 2015, contabilizaram-se 24 leis, projetos de lei, portarias, decisões judiciais, entre outras normas que tratavam do tema, das quais 10 tratavam da proibição do procedimento sem exceções e 14 correspondiam a regulamentações que permitiam a prática em determinadas condições.
Do mesmo modo, em 15 de abril de 2016, foi publicada a Lei nº 13.271 que proibiu a revista íntima de funcionárias nos locais de trabalho e da revista íntima em ambientes prisionais. Ocorre que o artigo 3º, que tratava especificamente do ambiente prisional, foi vetado por permitir interpretação diversa da proibição, de forma que o dispositivo legal não trata explicitamente da revista em familiares ou nos próprios presos.
No mesmo ano, o assunto também foi abordado no Informe sobre tortura e outras penas cruéis, desumadas e degradantes pelo Relator Especial da Organização das Nações Unidas que considerou que a prática não pode ser justificada com o objetivo de impedir o contrabando de objetos ilegais quando existem alternativas menos invasivas. No entanto, as práticas humilhantes permanecem mesmo em estados em que já houve regulamentação legal e medidas menos invasivas são ignoradas.
Desde 2003, o art. 3º da Lei nº 10.792/2003 alterou a Lei de Execução Penal para determinar que “os estabelecimentos penitenciários disporão de aparelho detector de metais, aos quais devem se submeter todos que queiram ter acesso ao referido estabelecimento, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública”. Tal determinação também consta da Resolução nº 5/2014 do CNPCP, em que se determina que a revista será realizada por meios eletrônicos e, excepcionalmente, por meios manuais.
Como incentivado pelas Regras de Bangkok, face à excepcionalidade do procedimento íntimo, o uso de meios eletrônicos como scanners corporais, são alternativas menos onerosas à dignidade e à saúde e substituem de modo eficaz as inspeções íntimas e os toques invasivos, mas diante de sua falta, não funcionamento e abuso de poder, a prática violenta persiste, de modo que esse tipo de equipamento não tem impedido a realização da revista vexatória.
Decisão do Supremo Tribunal Federal
Por meio do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) n.º 959620, a revista íntima passou a integrar a pauta do Plenário do Supremo Tribunal Federal em 2020. Após 4 sessões virtuais, o tema voltou a ser discutido no final de 2024, face ao destaque dado ao processo pelo ministro Alexandre de Moraes.
Trata-se de caso em que uma mulher foi acusada do crime de tráfico de drogas por transportar em seu corpo 96 gramas de maconha nas dependências do Presídio Central de Porto Alegre–RS. Absolvida ante a consideração das provas como ilícitas, o Ministério Público estadual recorreu ao Supremo Tribunal Federal que, por maioria, negou provimento ao recurso, mantendo a ilicitude da prova.
O julgado tratou da responsabilização de servidores públicos pela eventual prática de abusos e definiu que as provas obtidas por meio de revista íntima humilhante serão consideradas ilícitas. Além disso, fixou prazo de 24 meses, a partir do julgamento, para a compra e a instalação de equipamentos como scanners corporais, esteiras de raio-x e portais detectores de metais em todas as unidades prisionais do país, a partir de recursos dos fundos Penitenciário Nacional e de Segurança Pública.
Por fim, a tese de julgamento foi definida por unanimidade, tendo como relator o Ministro Edson Fachin.
Com a repercussão geral reconhecida (Tema 998): podemos afirmar que a decisão proíbe a prática da revista vexatória?
Ao tratar da legalidade do procedimento e da validade das provas advindas da submissão à prática humilhante, a Corte não só abriu espaço para a possibilidade de que decisões judiciais possam validar as provas obtidas em revistas vexatórias diante das circunstâncias de cada caso concreto, mas também permitiu a que a retirada total ou parcial de roupas para inspeção de regiões do corpo fosse realizada em casos excepcionais, em maiores de idade por agente do mesmo gênero e em local adequado e exclusivo para verificação.
Conforme o julgado, são exemplos de circunstâncias excepcionais os casos em que o aparelho não seja efetivo na identificação precisa dos objetos ingeridos pelo visitante ou ainda, na impossibilidade de utilização de scanners corporais ou equipamentos de raio-x quando houver indícios “robustos” e “verificáveis” de suspeita, mediante autorização do revistado e preferencialmente, por profissionais da saúde, quando envolver o desnudamento e exames invasivos. No caso de menores de idade ou visitantes impossibilitados de fornecer consentimento válido, a revista será realizada no próprio preso após a realização da visita.
Em visitas sociais nos presídios ou estabelecimentos de segregação é inadmissível a revista íntima vexatória com o desnudamento de visitantes ou exames invasivos com finalidade de causar humilhação. A prova obtida por esse tipo de revista é ilícita, salvo decisões judiciais em cada caso concreto […] A autoridade administrativa, de forma fundamentada e por escrito, tem o poder de não permitir a visita diante da presença de indício robusto de ser a pessoa visitante portadora de qualquer item corporal oculto ou sonegado, especialmente de material proibido, como produtos ilegais, drogas ou objetos perigosos. São considerados robustos indícios embasados em elementos tangíveis e verificáveis, como informações prévias de inteligência, denúncias, e comportamentos suspeitos.. […] Excepcionalmente, na impossibilidade ou inefetividade de utilização do scanner corporal, esteira de raio-x, portais detectores de metais, a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais, diante de indícios robustos de suspeitas, tangíveis e verificáveis, deverá ser motivada para cada caso específico e dependerá da plena concordância do visitante, vedada, em qualquer circunstância, a execução da revista como forma de humilhação e de exposição vexatória; deve ser realizada em local adequado, exclusivo para tal verificação, e apenas em pessoas maiores e que possam emitir consentimento válido por si ou por meio de seu representante legal, de acordo com protocolos gerais e nacionais preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero do visitante, preferencialmente por profissionais de saúde, nas hipóteses de desnudamento e exames invasivos. O excesso ou o abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou do profissional de saúde habilitado e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá, de forma fundamentada e por escrito, impedir a realização da visita. O procedimento de revista em criança, adolescente ou pessoa com deficiência intelectual que não possa emitir consentimento válido será substituído pela revista invertida, direcionada à pessoa a ser visitada”. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 2.4.2025.
Com isso, verifica-se, que a tese apresentada pelo Supremo Tribunal Federal não veda definitivamente a prática da revista íntima vexatória, mas reporta inadmissível quando praticada com o intuito de causar humilhação ou exposição vexatória. Dessa forma, utiliza-se de conceitos demasiadamente abstratos que possibilitam a perpetuação da violação da dignidade dos visitantes e visitados.
Além disso, ao condicionar a revista vexatória ao consentimento do visitante, a Corte ignora o contexto prisional e pressupõe uma relação horizontal entre agentes prisionais armados e os familiares, quando em verdade a negativa pode não só obstar a entrada do revistando, mas o mínimo questionamento pode implicar na imposição de sanções informais sobre os seus familiares presos, tais como confisco de alimentos, produtos de higiene ou perseguições e castigos. Nesse contexto, podemos afirmar que há expressão de vontade livre?
Nesse sentido, a revista humilhante funciona como instrumento intimidatório e penalização extensa aos familiares por meio da coerção, do constrangimento e da violência, para os quais o princípio constitucional de individualização da pena não se aplica.
Diante de seu caráter extremamente vexatório, além de violar direitos fundamentais, a revista íntima é um importante fator contributivo para o enfraquecimento e a ruptura dos vínculos familiares, afetivos e comunitários das pessoas aprisionadas.
Por óbvio, a prática não se justifica em nome da segurança prisional, o que se torna ainda mais flagrante diante de todo o aparato tecnológico disponível além de sua comprovada ineficácia no banimento de itens proibidos de dentro dos estabelecimentos penais, atestada pela desproporcionalidade entre as apreensões de visitas e o que é encontrado nas celas. Tal fato demonstra que as práticas utilizadas são completamente ineficazes em seus fins e que os objetos ilícitos encontram outras formas de entrada, que não por meio dos visitantes.
Desse modo, a perpetuação da prática, mesmo diante de diversos dispositivos legais que a proíbem, decorre de pensamento enraizado socialmente que reduz o preso e, consequentemente, seus familiares à prática do crime, destituindo-o de humanidade e da presunção de inocência, pessoas as quais o princípio da pessoalidade da pena ignora.
