Acessibilidade Eleitoral

Joelson Dias[1]

Ana Luísa Junqueira[2]

Segundo dados do Relatório Mundial de 2011 sobre as pessoas com deficiência, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de um bilhão de pessoas no mundo convivem com alguma forma de deficiência (física, mental, intelectual ou sensorial), dentre as quais, 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis. Só no Brasil, quase 24% da população apresenta algum tipo de impedimento.[3]

De acordo com dados divulgados em agosto de 2020 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 147.918.483 de eleitores brasileiros estavam aptos a votar nas Eleições 2020. Desse total, 1.158.234 declararam-se como pessoas com deficiência ou que necessitavam de algum tipo de atendimento especial. Por outro lado, de pessoas candidatas aos cargos para as eleições de 2020, 6.584 afirmaram ter algum tipo de impedimento, ou seja, apenas 1,2% do total de candidaturas. Segundo o TSE, esta é a primeira vez que as eleições brasileiras incluíram a autodeclaração de deficiência no registro de pedidos de candidaturas. O preenchimento, no entanto, é opcional, assim como a informação de cor.

Embora seja imprescindível assegurar ao indivíduo liberdade para discutir publicamente suas reivindicações, as decisões políticas só podem ser consideradas legítimas em uma ordem democrática, se também o acesso à participação na esfera pública for garantido de forma igualitária a todos. Assim, a liberdade de se expressar politicamente é por si um valor essencial, mas deve ser garantida de forma igual a todos para que seja alcançada a justiça social.

Por sua própria condição, determinados indivíduos necessitam de proteção específica, indispensável para que possam se incluir socialmente e participarem da vida pública e política em condições de igualdade. Para que a igualdade seja alcançada integralmente, devemos considerá-la também em sua dimensão material. As distinções dos diferentes grupos sociais (igualdade material) devem, então, ser levadas em conta, pois, do contrário, o direito acaba por gerar mais desigualdades. Em outras palavras, o tratamento jurídico desigual aos grupos socialmente mais vulneráveis, como é o caso das pessoas com deficiência, é essencial para se garantir a igualdade na realidade fática da vida. É a chamada “desigualação” positiva, desigualando para igualar.

Na tentativa de formular um modelo político mais justo ou adequado à complexidade das sociedades contemporâneas, Habermas (2002) entende que a exclusão do “diferente” se dá por meio de uma vontade consciente de homogeneidade social, que provoca a marginalização interna de grupos sociais. Sua proposta contra essa exclusão sistemática consiste na defesa de que a política própria da democracia deve ser dirigida na direção da “inclusão do outro”, uma inclusão que promova a independência de características individuais de cada qual, e que conte com acesso à comunidade política.[4]

Nesse sentido, mais particularmente, a acessibilidade eleitoral visa a erradicar as barreiras (atitudinais, físicos e socioeconômicos)  que limitam ou mesmo impedem o exercício pelas pessoas com deficiência dos seus direitos políticos. Não se traduz exclusivamente no direito de votar com facilidade, o que, por si só, não é menos importante. Mas, vai além, devendo criar as condições necessárias, com a adoção de medidas concretas para a eliminação de males não menos piores, como a exclusão, a discriminação e o preconceito, que mitigam as chances de indivíduos com deficiência participarem da vida pública e política em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

É precisamente nesse contexto que surgem as normas destinadas a assegurar e promover a voz cidadã das pessoas com deficiência. No plano internacional, capítulo especial da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) – que, no Brasil, tem status de norma constitucional – foi dedicado aos direitos e garantias de participação na vida pública e política das pessoas com deficiência (art.29). Seguindo as diretrizes da Convenção, no sistema jurídico nacional, a Lei n. 13.146 (Lei Brasileira de Inclusão) expressamente também assegura referidos direitos (art. 76).

Importante destacar que, antes mesmo da promulgação da Lei Brasileira de Inclusão, o Tribunal Superior Eleitoral já havia criado o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral (Resolução nº 23.381/2012), que, na mesma linha do que posteriormente seria preconizado também pela LBI, garante acessibilidade nos procedimentos, instalações e materiais para votação[5].

Nesse sentido, a jurisprudência nacional, no Recurso Ordinário n. 0602475-18.2018.6.26.0000, rel. Min. Barroso, de 21.9.2018), em discussão sobre a inelegibilidade de candidato com deficiência visual que não era alfabetizado em braile, determinou não haver exigência do conhecimento desta língua para fins de participação no pleito. “Para promover o acesso das pessoas com deficiência aos cargos eletivos, deve-se aceitar e facilitar todos os meios, formas e formatos acessíveis de comunicação, à escolha das pessoas com deficiência. Além disso, a decisão reiterou que “a concepção de se privilegiar o direito à elegibilidade, notadamente das minorias políticas, tem aplicação especial ao caso das pessoas com deficiência. O propósito central da CDPD é promover o exercício pleno e equitativo dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, eliminando todos os tipos de discriminação. Pretende-se, assim, garantir tanto quanto possível a igualdade de oportunidades entre pessoas com e sem deficiência”.

Releva notar que, o Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão criado para promover a implementação e monitoramento dos direitos previstos na CDPD, em seu Comentário Geral n° 1, expressou que os Estados Partes têm a obrigação de proteger e promover o direito de as pessoas participarem sem discriminação em todas as eleições e referendos, sendo a capacidade jurídica essencial para o exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.[6]  No Brasil, consoante o disposto no art. 3º do Código Civil, alterado pela Lei Brasileira de Inclusão (art. 114 da Lei n° 13.146/15), são considerados absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 anos, não alcançando as pessoas com deficiência.

Em 2015, ao comentar relatório oficial apresentado pelo país, referido Comitê externou sua preocupação com a discriminação sofrida por tais indivíduos no exercício do seu direito de voto, especialmente em razão de interdição e restrições a sua capacidade jurídica, além da falta de acessibilidade em muitos locais de votação e nas informações sobre as eleições e campanhas eleitorais em todos os formatos acessíveis.[7]

Não obstante a adoção de normas de proteção e promoção de acessibilidade eleitoral seja mais um importante avanço, a efetivação dos direitos políticos das pessoas com deficiência reclama, principal e concretamente, o planejamento e a execução de políticas públicas, inclusive intersetoriais e na forma de ações afirmativas (que viabilizem a universalização do acesso a bens e serviços públicos), a educação em direitos humanos (a fim de que as pessoas com deficiência se reconheçam e sejam reconhecidas como titulares ou sujeitos de direitos públicos subjetivos) e o desenvolvimento de ações e programas que incrementem a sua participação e de suas entidades representativas na vida pública e política, especialmente as chances de serem eleitas para ocupar uma função pública e de influenciarem no resultado das decisões políticas.

Notas

[1] Advogado, sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, Brasília-DF. Ex-Ministro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Atual Secretário do Conselho de Colégios e Ordem dos Advogados do Mercosul (COADEM) e Membro da Comissão Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB. Foi Procurador da Fazenda Nacional e servidor concursado do Tribunal Superior Eleitoral e da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Foi assistente da Promotoria no Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, em Haia, na Holanda (1997) e atuou como Consultor na Missão Civil Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti (1993-1994).

[2] Advogada parceira do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, Brasília-DF. Mestre em direitos humanos pela Universidade do Minho em Portugal e doutoranda pela Universidade de Coimbra em Portugal.

[3] Dados de acordo com Censo 2010. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/20551-pessoas-com-deficiencia.html. Acesso 15.12.2021

[4] HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola. 2002.

[5] Vide art. 76, §1º, I da LBI.

[6] Comentário Geral n. 1 disponível em: encurtador.com.br/ejz56 Acesso 15.12.2021

[7] Observações finais da ONU sobre Relatório enviado pelo Brasil.

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