A Corte Interamericana de Direitos Humanos publicou a sentença de admissibilidade, mérito e reparações do caso Márcia Barbosa e Outros v. Brasil, declarando o Estado Brasileiro em violação dos Artigos 8 (proteção judicial), 25 (garantias judiciais), 24 (igualdade perante a lei), em conjunção com o Artigo 1.1 (respeito e garantia de direitos sem discriminação), 2 (obrigação de adotar disposições de direito interno) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), além da violação ao Artigo 7 (b) (obrigação de devida diligência) da Convenção de Belém do Pará para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
Márcia Barbosa era uma estudante negra, de 20 anos de idade, residindo em Cajazeiras (PB). Foi a João Pessoa participar de uma convenção partidária, ficando nessa capital possivelmente para conseguir um trabalho, em novembro de 1997. Ela encontrou durante a noite com o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima e foi encontrada morta em um lote abandonado na mesma cidade, com várias escoriações e provas de asfixia, como a própria perícia forense pode constatar.
O inquérito policial foi instaurado e o Ministério Público denunciou o ex-deputado por homicídio duplamente qualificado e ocultação de cadáver. O respectivo processo penal foi paralisado por um período de 5 anos, devido ao regime de imunidade parlamentar vigente à época, antes do advento da Emenda Constitucional 35/2001, o que configurou um caso grave de impunidade. Devido ao foro privilegiado de que gozava o parlamentar, a Procuradoria Geral de Justiça apresentou denúncia ao TJPB, sob a ressalva de necessitar autorização da Assembleia Legislativa para processar o parlamentar. A imunidade parlamentar em questão bloqueou o início da ação penal por cinco anos, até que, em 2003, quando o feminicida não havia sido eleito no pleito seguinte, a ação penal volta para o juízo de primeira instância e o então réu foi processado. A sentença de pronúncia foi exarada em julho de 2005. Após vários recursos da defesa, o Tribunal do Júri o réu a 16 anos por homicídio e ocultação de cadáver, em julho de 2007 (quase 10 anos após o feminicídio). O réu faleceu enquanto seu recurso de apelação tramitava no TJPB.
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A sentença da CorteIDH neste caso é importante por várias razões. É a primeira sentença da CorteIDH sobre um caso de violência de gênero contra a mulher e feminicídio relativo ao Brasil. Em 2001, a CIDH declarou o Estado brasileiro em violação de vários artigos da CADH no caso Maria da Penha, que trouxe um inegável avanço para o Brasil, inclusive pela adoção, em 2006, da Lei Maria da Penha, como medida reparatória no contexto da decisão da Comissão. A Lei Maria da Penha trouxe inovações positivas, como o próprio conceito de violência contra a mulher, no âmbito interno. Contudo, ainda vários outros desafios permanecem, como a sentença da CorteIDH detalha.
A primeira é a questão da imunidade parlamentar como obstáculo para a punição do feminicida no caso. A casa legislativa barrou por cinco ano a própria abertura do processo penal, no regime constitucional anterior. Para a Corte, o trâmite do pedido de processamento do parlamentar ante a Casa Legislativa foi eivado de erros. O próprio regime constitucional antes da Emenda 35 implicava em impunidade, dando margem a decisões arbitrárias e corporativistas, o que não foi contestado pelo Estado brasileiro (parágrafo 113). Ademais, na Casa Legislativa, havia dois procedimentos conflitantes e as regras vigentes na Casa à época não contemplavam critérios objetivos para avaliar a licença para o processamento de parlamentares, levando a mais um fator de impunidade (parágrafos 114 a 123).
A segunda é o reconhecimento de um padrão de violações. A Corte declarou que “[a] violência contra as mulheres no Brasil era – para a data dos feitos do presente caso – e continua sendo na atualidade – um problema estrutural e generalizado” (parágrafo 47)”. A Corte aponta para um padrão geral de tolerância à violência contra a mulher, como as estatísticas nacionais, ainda que falhas, indicam. O Brasil, em 2016, foi indicado com o país com a mais alta taxa de homicídio contra a mulher por razão de gênero, situação que piorou nos anos seguintes. Em especial, a Corte fez uma análise interseccional (gênero e raça), mostrando que “a taxa de vitimização das mulheres negras no país é 66 vezes superior à das mulheres brancas” (parágrafo 53). O Brasil, segundo a Corte, não possui um cadastro nacional de feminicídios, o que mantém as vítimas na invisibilidade.
A terceira é o diagnóstico de um viés de gênero na investigação e processamento do caso. Além das falhas apontadas na investigação, em termos neutros, o que por si é grave, a Corte indicou várias atitudes das autoridades que reforçaram uma visão estereotipada durante as investigações (parágrafos 138-151). Durante as oitivas das testemunhas, a Corte nota a insistência de perguntas sobre o comportamento sexual da vítima, possível uso de substâncias, tentando colocar a sua reputação em jogo. A Corte observou que “a repetição das provas testimoniais procurou construir uma imagem de Márcia Barbosa para gerar dúvidas sobre a responsabilidade penal do então deputado” (parágrafo 148). A Corte baseou seu entendimento em precedentes como o Caso Campo Algodonero v. México (2009), Velásquez Paiz e outros v. Guatemala (2015) e a Recomendação Geral No. 33 do Comitê CEDAW (ONU).
A Corte também considerou os familiares diretos de Márcia como vítimas no caso, em razão da consolidada jurisprudência no sentido de que os familiares padecem de profunda angústia e sofrimento físico e moral (Arts. 5.1 e 1.1 da CADH), agravado pela demora na resposta estatal e na quase certeza de impunidade (parágrafo 162).
Como medidas de reparação, a Corte ordenou:
Reabertura do caso: improcedente, em vista da morte do acusado.
Satisfação
- Publicação do resumo oficial da sentença e da própria sentença;
- Realização de solene de reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado.
Reabilitação
- Pagamento de soma em dinheiro para que os familiares da vítima possam arcar com tratamento psicológico
Garantias de Não-Repetição
- Implementação de um sistema nacional de centralizado de registro de feminicídios, desagregados em idade, raça, classe social, perfil da vítima, lugar de ocorrência perfil do agressor, relação com a vítima e outras variáveis.
- Implementação de programas de capacitação e treinamento sobre violência contra a mulher
- Reabertura do processo, improcedente, pelo falecimento do acusado.
- Adoção de um protocolo de investigação sobre mortes violentas de mulheres em razão de gênero.
- Regulamentação da imunidade parlamentar
Indenizações
- Dano moral aos familiares
- Custas e gastos processuais
- Reintegração de gastos ao fundo de assistência legal às vítimas
Ficha do Caso
Órgão | Corte Interamericana de Direitos Humanos |
Caso | Márcia Barbosa e Outros v. Brasil |
Data | 7 de setembro de 2021 |
Modo de Citação | Corte IDH. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435. |
Partes | Comissão Interamericana de Direitos Humanos (autor) |
Estado Brasileiro (Estado respondente) | |
Representantes das Vítimas | Gabinete de Assessoria às Organizações Populares (GAJOP)Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) |
Admissibilidade | Exceções Preliminares Arguidas pelo Estado respondente:- Incompetência “Ratione Temporis” – parcialmente concedida
– Esgotamento dos recursos internos – rejeitada |
Mérito | – Violação Artigos 8, 24 e 25 CADH (Márcia Barbosa)- Violação Artigo 5.1 CADH (familiares diretos)
– Violação Artigo 7 (b) Convenção Belém do Pará |
Resumo Oficial | https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_435_esp.pdf |
Texto da Sentença | https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_esp.pdf |
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