No dia 15 de março de 2025, ao menos 238 venezuelanos foram deportados dos Estados Unidos para El Salvador e enviados diretamente ao Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), a chamada “megacárcel” do governo de Nayib Bukele. Muitos deles não tinham qualquer antecedente criminal. Outros sequer sabiam que estavam sendo acusados de pertencer à gangue criminosa Tren de Aragua. Nenhum teve direito a um julgamento justo.
Essa operação, conduzida em nome da “segurança nacional”, reacende uma velha e perigosa prática: a criminalização de migrantes com base em critérios raciais, estéticos e geopolíticos. Para justificar a ação, os EUA recorreram à Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798, usada no governo Trump e agora revivida — um anacronismo legal que diz muito sobre as prioridades políticas do presente.
Um voo que ignorou a Justiça
A deportação aconteceu mesmo após uma ordem judicial federal nos EUA que suspendia os voos. Autoridades norte-americanas ignoraram a decisão e prosseguiram com a remoção, o que configura uma grave violação do devido processo legal. Organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch, denunciaram os casos como detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados, especialmente porque familiares passaram dias sem qualquer informação sobre o paradeiro dos detidos.
E a OEA?
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), com sede em San José da Costa Rica, é o principal órgão judicial regional para a proteção dos direitos humanos nas Américas. Porém, os Estados Unidos nunca reconheceram a sua jurisdição contenciosa — ou seja, a Corte não pode julgar diretamente casos contra os EUA. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por sua vez, é um órgão ligado à própria carta da OEA, e não meramente à Convenção Americana, e tem adjudicado historicamente em casos contenciosos contra os EUA. Desta forma, a CIDH tem jurisdição sobre todos os membros da OEA, mesmo que não tenham ratificado nenhum tratado regional específico ou reconhecido a jurisdição da Corte, inclusive os EUA.
Direitos violados
Embora os Estados Unidos não reconheçam a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os princípios estabelecidos por essa Corte oferecem um standard normativo com autoridade para avaliar as violações ocorridas na deportação de venezuelanos para El Salvador. Com base na jurisprudência da Corte, especialmente p.ex. nos casos Ramírez Escobar y otros vs. Guatemala (2018) e na Opinião Consultiva OC-18/03, é possível identificar diversas violações:
Direito à não discriminação (Artigos 1.1 e 24 da Convenção Americana): A seleção dos deportados com base em critérios como aparência, nacionalidade e estereótipos constitui uma forma de discriminação proibida. A Corte, na Opinião Consultiva OC-18/03, enfatizou que o status migratório não pode ser utilizado como justificativa para violar direitos humanos.
Garantias judiciais e proteção judicial (Artigos 8 e 25): A ausência de direito à defesa, recurso, audiência ou notificação adequada configura uma violação das garantias judiciais. No caso Ramírez Escobar y otros vs. Guatemala, a Corte destacou a importância do devido processo legal, especialmente em contextos envolvendo populações vulneráveis.
Direito à liberdade pessoal (Artigo 7): A detenção arbitrária de indivíduos sem mandado judicial ou acusação formal viola o direito à liberdade pessoal. A jurisprudência da Corte reitera que qualquer privação de liberdade deve estar em conformidade com os princípios legais estabelecidos.
Proibição de tratamento cruel, desumano ou degradante (Artigo 5): A transferência forçada para um presídio de segurança máxima, sem acusação formal, viola o princípio da dignidade humana. A Corte, em diversas decisões, ressaltou que os Estados têm a obrigação de garantir condições de detenção compatíveis com a dignidade humana.
Direito à proteção da família e da vida privada (Artigos 11 e 17): As separações abruptas e a falta de comunicação com familiares violam os direitos à proteção da família e à vida privada. No caso Ramírez Escobar y otros vs. Guatemala, a Corte reconheceu a importância de preservar os vínculos familiares, mesmo em contextos de migração e adoção internacional.
Essas violações evidenciam a necessidade de os Estados adotarem medidas que garantam o respeito aos direitos humanos de todos os indivíduos, independentemente de sua situação migratória. A jurisprudência da Corte Interamericana serve como um guia essencial para a implementação de políticas públicas que respeitem e promovam os direitos fundamentais.
Uma lição para o continente
Este caso não é apenas sobre os EUA. É também sobre o papel das Américas na proteção dos migrantes, especialmente em contextos onde a segurança é usada como desculpa para práticas autoritárias.
A Corte Interamericana já deixou claro, em diversas decisões, que nenhuma política migratória pode violar os direitos humanos fundamentais. A expulsão coletiva, o uso da prisão como política migratória e a detenção sem julgamento são incompatíveis com a Convenção Americana.
E agora?
Diante da impossibilidade de responsabilização direta dos EUA na Corte Interamericana, cabe à Comissão, às organizações civis e aos próprios Estados interamericanos exercerem pressão diplomática, jurídica e pública, dentro e fora das Américas. O silêncio não é uma opção. O envio de migrantes para uma megacárcel — sem devido processo, sem ampla defesa, sem transparência — não pode se tornar a nova norma, tampouco um precedente.
Esse caso nos lembra que a luta por justiça migratória também passa por descolonizar o sistema interamericano, questionando as assimetrias de poder e ampliando a proteção aos mais vulneráveis, mesmo contra os Estados mais poderosos.
Se você acredita que migrar não é crime, compartilhe esse texto. É hora de lembrar aos governos que os direitos humanos não são negociáveis — e muito menos deportáveis.