Sem Anistia! Um Passo Positivo do STF para o Brasil Cumprir com Suas Obrigações Internacionais

Decisão do Ministro Flávio Dino de propor incidente de repercussão geral sobre a aplicação da Lei de Anistia para crimes de ocultação de cadáveres é um passo importante.
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

 Com tanta gente que partiu num rabo de foguete.
Chora a nossa pátria, mãe gentil.
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil.
Adir Blanc

Em 15 de dezembro de 2024, no âmbito do Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.501.674 do Estado do Pará discutiu-se a compatibilidade da aplicação de normas relativas à justiça de transição constantes na Lei de Anistia aos crimes de desaparecimento forçado. A decisão monocrática do Ministro Flávio Dino, relator do RE, abre um entendimento benéfico para ajustar o entendimento das Altas Cortes Brasileiras aos padrões interamericano e onusiano, segundos os quais as leis de anistia, adotadas para acobertar atrocidades cometidas em tempos de exceção e garantir a impunidade dos seus perpetradores, são incompatíveis com esses padrões. Contudo, o tema da validade questionável da Lei de Anistia ainda continua irresoluto. Desta forma, é bem-vindo o chamado, pelo Ministro, de um incidente de repercussão geral sobre o tema.

O desaparecimento forçado foi adotado como prática sistemática nas ditaduras da América Latina. No Brasil, o período de regime militar [1964-1985] foi marcado pelo emprego de sequestro, tortura e execuções extrajudiciais de opositores políticos, muitos dos quais, jamais tiveram seus corpos encontrados. Conforme o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, esse regime foi responsável por 343 mortos e desaparecidos, sem contar com a subnotificação da população indígena e negra que sofreu desproporcionalmente os efeitos drásticos da ditadura.

A ocultação dos cadáveres serviu não só à tentativa de eliminar os vestígios dos crimes, mas para a intimidação e o aprofundamento do sofrimento dos familiares, que passaram a conviver com a ausência e com o luto prolongado, a incerteza, o medo e o isolamento, ao mesmo tempo em que buscavam justiça por seus entes, cujo paradeiro é a angustiante incógnita de um sepultamento sem caixão.

No entanto, durante o período transicional, a Lei n.º 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei de Anistia), veio anistiar aqueles que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Com isso, esperava que todos aqueles que perpetraram crimes políticos ou conexos no período fossem perdoados. Em entendimento restrito, do STF, em 2010, através da ADPF 153 revalidou a Lei de Anistia, em que pesasse a condenação do Estado brasileiro ante a CorteIDH, no caso Gomes Lund e Outros (Guerillha do Araguaia). Esse entendimento pelo STF frustrou as vítimas e familiares da ditadura, além de deixar o país em violação continuada ante a Corte Interamericana.

Não obstante, na decisão em estudo, o Ministro Flávio Dino reconheceu que a ocultação de cadáver tipifica uma conduta que se prolonga no tempo e tem natureza de crime permanente, subsistindo até o momento em que o corpo é descoberto:

“É preciso destacar o desacerto da afirmação contida no item 9 do Acórdão recorrido: “O crime de ocultação de cadáver, ainda que permanente, foi excluído da esfera criminal, na medida em que a anistia operou-se sobre o fato e não somente sobre a conduta daquele período de tempo abrangido pela anistia.” Contudo, não se pode transformar um fato permanente em instantâneo de efeito permanente, que é a confusão operada pelo Acórdão recorrido. O crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática do crime, bem como situação de flagrante”.

Em outras palavras, o estado flagrancial perdura por todo o período em que o corpo for mantido em segredo, caso em que, se permanece oculto o cadáver após o marco temporal da Lei de Anistia, o crime não está abrangido por ela, tendo em vista que não há ultratividade para a Lei da Anistia, o que constituiria uma espécie de “abolitio criminis” prospectiva.

Com efeito, não há o que se falar em ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, visto que o termo inicial do prazo prescricional só ocorre no momento em que cessa a permanência do crime. Na decisão defendeu-se que:

O tema apresenta repercussão geral, especialmente do ponto de vista social, político e jurídico: (i) social, em razão dos impactos relacionados à maneira como o Brasil enfrentou a sua história, além de ser indispensável lembrar a conclusão milenar sobre a existência de um direito natural dos pais e mães velarem e enterrarem dignamente seus filhos, o que se estende a irmãos, sobrinhos, netos, etc; (ii) político, tendo em conta a definição do alcance da decisão do STF sobre a Lei da Anistia e as questões de direitos humanos relacionadas, impactando, inclusive, nas relações internacionais do Brasil; e (iii) jurídico, porque relacionado à interpretação e alcance das normas constitucionais e infraconstitucionais que tratam da anistia e dos crimes permanentes”. 

Nesse sentido, a importância do julgado não diz respeito somente aos crimes relacionados à ditadura militar, visto que o ocultamento de corpos ainda é uma ferramenta amplamente utilizada pelas forças de segurança no Brasil, perpetuando-se também um estado de coisas em que são comuns a ausência de investigação, de responsabilização de casos de desaparecimento e de tipificação da prática como crime.

Crimes de Maio, Amarildo de Souza, Chacina de Acari e Davi Fiúza são alguns dos casos que nos fazem compreender que a ocultação de corpos segue sendo instrumento de genocídio como prática institucional que reclama a adoção de estratégias contundentes de prevenção de crimes contra a humanidade. Essas atrocidades, ocorridas no pós-ditadura, que açoitam a população negra e pobre do Brasil, podem receber novos contornos a partir da decisão tomada a partir da decisão a ser tomada nesse novo incidente de repercussão geral. O IBDH publicou um post sobre a importância da sentença da CorteIDH no Caso da Chacina de Acari

Ao mesmo tempo, necessário olhar detalhadamente a decisão em relação ao entendimento sobre a validade constitucional da Lei de Anistia. O Ministro Dino parece optar, pelo menos por enquanto, deixá-la intocada. Ou usar provavelmente de cautela e deferência a seus pares, ensejando um debate plural em sede de repercussão geral. De fato, seu arrazoado apenas declara que o crime de ocultação de cadáver, por sua natureza continuada, enquanto um corpo for encontrado, ou o paradeiro da vítima elucidado, não encontra nenhum fator de contagem prescritiva. Sequer sua decisão declara que tal crime, em sentido contrário de vasto entendimento jurisprudencial, é imprescritível. Sua decisão menciona o caso Gomes Lund apenas citando a decisão agravada do TRF1. Não há menção ao caso Herzog, que elaborou sobre a compatibilidade da Lei de Anistia com a CADH. A questão da continuidade do crime de ocultação, no período anterior à vigência da Lei de Anistia, é remetida integralmente à Plenária, em sede de repercussão geral, nos seguintes termos:
Possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº. 6.683/79.

Desta forma, a decisão monocrática em estudo não entra em ponto que, nos parece central: a validade da Lei de Anistia, em vista do posicionamento do Estado brasileiro após a redemocratização, inclusive ao ratificar a grande maioria dos tratados de direitos humanos, nos âmbitos da ONU e da OEA, o que leva necessariamente a um novo entendimento de que as leis de anistia adotadas em contextos de exceção, são contrárias a um novo regime democrático onde os direitos, fundamentais devem vigorar em sua plenitude.

Não por estrangeirismo, mas por livre manifestação de sua vontade soberana, o Brasil aderiu à quase totalidade dos tratados de direitos humanos ao retornar à normalidade democrática, incluindo o reconhecimento da competência contenciosa da CorteIDH. Esta Corte já julgou, nos casos Gomes Lund e Vladimir Herzog, que a Lei de Anistia deve ser derrogada para que o Estado cumpra com as duas respectivas sentenças. Durante o trâmite do último caso, o próprio Estado brasileiro reconheceu “reconheceu a inexistência de recursos disponíveis para as vítimas, em virtude da Lei de Anistia” (par. 69), resultando em um padrão de impunidade legislada.

No âmbito das Nações Unidas, também de livre adesão do País, o Comitê de Direitos Humanos, ao revisar a nossa situação de direitos humanos, em 2023, alertou sobre a “falta de compatibilidade da Lei de Anistia de 1979 com as disposições do Pacto [Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos] (arts. 2, 6, 7 e 14)” (par. 11). Igualmente, o Comitê sobre os Desaparecimentos Forçados, revisando, em 2021, o cumprimento por parte do Estado das obrigações contidas na respectiva Convenção, alertou que o Brasil ainda não adotou um crime de desaparecimentos forçados conforme os requisitos dessa Convenção. Este Comitê recomendou o Estado a “garantir, uma vez estabelecido esse delito, sua aplicação aos casos de desaparecimento forçado que começaram antes da sua entrada em vigor, mas que hajam prolongado depois de sua ratificação, não esteja sujeito a nenhuma limitação, como as que possam se derivar da Lei de Anistia (par. 15 (b)).

É bem-vindo o debate, em sede de repercussão geral, de uma pauta de direitos humanos crucial para o País.

Espera-se que, durante os trâmites e o julgamento do incidente de repercussão geral, o STF faça um correto e sólido controle convencional, harmonizando a validade questionável da Lei de Anistia aos mais elevados padrões internacionais, dispensando justiça já deveras prolongada, e curando uma ferida histórica do País. 

O conteúdo deste artigo não reflete necessariamente a opinião do IBDH.

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