Migrantes, mulheres e plataformas: Liberdade ou exploração?

É preciso que a jurisprudência sobre trabalho digno elabore sobre esse novo fenômeno social que afeta de forma desproporcional mulheres de grupos vulnerabilizados.

As plataformas digitais mudaram tudo: a forma como nos comunicamos, nos locomovemos e… trabalhamos. Mas será que essa “revolução” digital tem sido justa para todos? A resposta, infelizmente, é não — especialmente quando falamos de mulheres migrantes.

Neste texto, quero compartilhar com você uma reflexão urgente: as plataformas como Uber, Rappi, iFood e OnlyFans têm sido apresentadas como símbolos de liberdade e autonomia, mas, na prática, o que vemos é a intensificação da precarização, da exploração e da exclusão. Isso vale, principalmente, para mulheres que já enfrentam múltiplas vulnerabilidades por serem migrantes, racializadas e sem acesso pleno a direitos nos países onde vivem.

🚗 Gig economy: promessas e armadilhas

O que chamamos de “gig economy” (economia de bicos) é um modelo onde o trabalho é intermediado por aplicativos. Você se cadastra, aceita tarefas, e recebe por cada entrega, corrida ou serviço. Parece simples, mas esconde um problema grave: não há vínculo empregatício, direitos trabalhistas, nem garantias mínimas.

Para muitas migrantes, esse modelo se tornou a única saída. Sem documentos, sem fluência no idioma local, sem rede de apoio, elas encontram nas plataformas uma forma de sobreviver. Mas a que custo?

💄 Quando o corpo vira trabalho

Além dos serviços de entrega e transporte, outra forma de “trabalho digital” tem crescido entre migrantes vulneráveis: a monetização da intimidade, como em plataformas de conteúdo adulto. Em tempos de crise, muitas mulheres se veem forçadas a vender imagens ou vídeos sensuais — sem proteção, sob risco de violência e estigmatização.

📊 O que os dados mostram?

Na França, menos de 9% das migrantes têm empregos formais.
No Brasil, apenas 0,4% das mulheres migrantes têm carteira assinada.
Os trabalhadores de plataforma no Brasil recebem em média R$6,54 por hora, sem direitos.

Ou seja, a exclusão não é exceção. Ela é a regra.

🔍 Três níveis de vulnerabilidade

A partir da minha pesquisa, desenvolvi uma tipologia com três níveis de precariedade no trabalho de plataformas:

  1. Vulnerabilidade regulada: trabalhos como limpeza, com alguma proteção.
  2. Vulnerabilidade moderada: entregas, transporte, sem vínculo formal.
  3. Vulnerabilidade extrema: trabalhos digitais ligados ao corpo e à intimidade, onde há estigma e nenhum respaldo legal.

 

⚖️ Entre a autonomia e a escravidão moderna

A precarização extrema, especialmente quando envolve a intimidade e a vulnerabilidade de mulheres migrantes, não é apenas um problema social — pode configurar violação grave de direitos humanos. A Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já enfrentaram esse tema em decisões fundamentais, reconhecendo que formas modernas de escravidão que violam diretamente o Artigo 4 da Convenção Europeia e Artigo 6 da Convenção Americana de Direitos Humano, que proíbe a escravidão, a servidão e o trabalho forçado. Ainda não há um pronunciamento preciso das cortes regionais sobre trabalho precário/forçado e esses artigos das Convenções regionais. Mas os casos abaixo deixam as linhas gerais para uma aplicação de trabalho digno e plataformas.

📍 Rantsev v. Cyprus and Russia (2010)
 Neste caso emblemático, uma jovem russa foi levada ao Chipre sob a promessa de trabalho artístico, mas acabou em um esquema de exploração sexual. Após tentar fugir, foi encontrada morta. A Corte considerou que os Estados falharam em protegê-la e em investigar adequadamente o tráfico humano, reconhecendo a situação como uma forma de escravidão moderna. Foi a primeira vez que a Corte vinculou tráfico humano à violação do Artigo 4, exigindo dos Estados não só resposta posterior, mas também ações preventivas.

📍 L.E. v. Greece (2016)
 Uma mulher nigeriana foi traficada e forçada à prostituição na Grécia. A Corte condenou o Estado grego por falhar em proteger e investigar efetivamente o caso, reforçando que a responsabilidade estatal não se limita à punição: inclui prevenção, proteção ativa e investigação diligente, especialmente quando se trata de vítimas migrantes.

📍Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil (2016)

No sistema interamericano, a Corte IDH também reconheceu situações de escravidão moderna e exploração como violações graves de direitos humanos. No caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil (2016), o Brasil foi condenado por permitir a manutenção de pessoas em condições análogas à escravidão, mesmo sem restrições físicas — bastando o controle econômico e social sobre os trabalhadores.

Esses precedentes mostram que a omissão do Estado diante de relações abusivas e exploração de migrantes configura violação direta aos direitos humanos. O trabalho digital, especialmente quando envolve mulheres em situação de vulnerabilidade, precisa ser repensado à luz dessas decisões: o que parece escolha, muitas vezes é falta de alternativa.

🌍 Um problema global e estrutural

Nos quatro países analisados na minha pesquisa (Brasil, Portugal, França e Alemanha), as plataformas aproveitam as brechas legais e o silêncio institucional para lucrar em cima da precariedade.

Se queremos falar de liberdade, precisamos falar de acesso a direitos, reconhecimento de vínculos, e políticas que tratem o trabalho digital com a mesma seriedade de qualquer outro.

E agora?

A solução não é culpar quem aceita esses trabalhos. Muitas mulheres migrantes não têm escolha. A solução está na responsabilização dos Estados, das empresas e das plataformas, na construção de uma legislação que proteja o trabalho digital e na valorização da vida das pessoas que estão por trás da tela.

O trabalho digital não pode ser o novo nome da exploração.

 



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