Blog do IBDH: O STF Retoma Julgamento da ADPF 635 (“ADPF das Favelas”)

Nesta postagem, a RENAP informa sobre julgamento, pelo STF, da ADPF que discute a (in)constitucionalidade das incursões das forças de segurança em favelas no Rio de Janeiro, debatendo o excesso de uso da força e execuções em áreas de alta concentração da população negra, jovem e pobre.


Na quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai retomar o julgamento da ADPF 635. Nesse sentido, a RENAP (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) vem apresentar nosso posicionamento coletivo em defesa da ADPF 635, reiterando que manter o que já foi decidido pelo STF e avançar no sentido do que está sendo requerido é tentar assegurar os últimos limites à força da polícia e frear a política institucionalizada de morte no Brasil.

‘Procurem cômodo com paredes mais grossas dentro de casa durante operações’. Essa é a frase do Porta Voz da Polícia Militar no Rio de Janeiro, indicando o que efetivamente é a proposta das políticas de segurança pública baseadas em operações violentas nas favelas. “Tem o efeito colateral […] Não é que a polícia precise matar mais, ela precisa poder fazer o trabalho dela. A consequência acaba sendo aumentar a letalidade, embora não seja o objetivo” – é o que o Governador Cláudio Castro afirma que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 – popularmente conhecida como a “ADPF das Favelas” – impede. 

Ao mesmo tempo em que questiona a ADPF por “impedir” o trabalho policial, o atual governador fluminense tem a audácia de afirmar que cumpriu a decisão do STF, mesmo que seu próprio governo informe que oficialmente – sem contar as inúmeras operações extraoficiais – foram 2.810 operações em favelas entre março de 2020 e maio de 2023. Essa é a gestão de um governador que afirma ser outro governo em relação a Witzel, como alegado na última audiência da ADPF no STF pela Procuradoria-Geral do Estado, mas que omite que era vice-governador de alguém que se elegeu dizendo que é para dar “tiro na cabecinha”.

É comum ouvirmos que se trata de um “desgoverno” o que se enfrenta no Rio de Janeiro. No entanto, o que vemos é a, cada vez mais, naturalizada política de morte executada pelas forças policiais contra cada morador de favela e periferia do estado do Rio de Janeiro. A fala do governador Cláudio Castro explicita a institucionalização da barbárie, a naturalização de políticas que promovem genocídio nas áreas de favela e a promoção da segurança pública militarizada responsável pela morte de crianças, de jovens, de trabalhadores e trabalhadoras, os quais são majoritariamente negros e de baixa renda.

Reiteradamente somos relembrados pelos noticiários que divulgam os resultados das operações policiais nas favelas fluminenses que o aumento da letalidade como um efeito colateral da atual política de segurança pública militarizada e de morte – política que vem sendo empregada desde o período da escravidão e ainda mais incrementada durante a ditadura empresarial-militar – atinge sobretudo as pessoas negras e populações vulnerabilizadas socialmente nas favelas do Rio de Janeiro e de todo o Brasil.

A necropolítica do atual governo do Rio de Janeiro encontra referência em toda a história: o local que funcionou como o maior porto de recepção de pessoas negras durante o período escravista foi o estado que, em 1969, criou o auto de resistência como forma de permitir os agentes da repressão matarem sem risco de responsabilização. Também é estado que criou, na década de 90, a política conhecida como ‘gratificação faroeste’, uma forma de estabelecer o ‘quem mata mais, ganha mais’ nas polícias. Também é o estado onde foram incontáveis os números de grupos de extermínio ativos e incontáveis foram as chacinas com dezenas de vítimas. Candelária, Vigário Geral, Baixada, Nova Brasília, Acari, Jacarezinho, Salgueiro e tantas outras marcam a história do estado, e que continuam marcando nos dias atuais. Só nos últimos 10 anos são 11.431 vítimas de agentes de estado oficiais, dos quais, em 2023, 79,2% eram negros, sendo o quarto estado que mais mata no Brasil, conforme indicam dados esses extraídos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do próprio Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro.

Porém, apesar dos dados alarmantes e do histórico do Rio de Janeiro na matéria de segurança pública, que deveria ser um referencial negativo na matéria, a política de genocídio da população negra e vulnerabilizada nas periferias não é uma particularidade do estado do Rio de Janeiro. Tampouco é particular a ideia do governador Cláudio Castro de que o aumento da letalidade é um mero ‘efeito colateral’ de uma política de segurança pública. Estamos presenciando, diariamente, a expansão da morte nas periferias como uma política de segurança pública assumida por governadores em todo o país, a exemplo do vemos nos estados de Goiás, São Paulo, Bahia, dentre outros.

Nesse contexto, quem não ouviu o medo que as mães negras de territórios periféricos em todo o Brasil sentem de perder seus filhos em atos absolutamente cotidianos, como voltar da escola, brincar com amigos, sair com a namorada? Estamos diante de uma política policial militarizada presente em todo o país que defende que, quando se trata da população negra e pobre, o direito a viver é uma exceção que cabe às próprias vítimas assegurar, ou seja, cabe a eles mesmos fugirem de ser “mais um dano colateral”.

A ADPF 635, nas circunstâncias atuais, representa não uma tentativa de frear a política de segurança do governo de Cláudio Castro, especificamente, mas sim de frear a política pública que historicamente é a mais efetiva no estado no Rio de Janeiro e em todas as periferias do país: a de matar pessoas negras. O julgamento da ADPF, assim, não é nada mais nada menos do que colocar um freio mínimo, avisando ao Estado que ele é responsável pela vida de todos os seus cidadãos e que não é viável a manutenção de uma política pública que se funda e perpetua no assassinato.

Não existe nenhuma grande panaceia nas medidas ou pedidos estapafúrdios. O que se discute na ADPF é decorrente do nosso arcabouço constitucional. Trata-se de afirmar, por exemplo, que perícia precisa ser feita por órgão diferente daquele que fez o homicídio; que o Estado tem que pensar como ele vai reduzir sua matança que já acumula, como mostramos, dezenas de milhares; que em horário no qual a criança está na rua para poder exercer o direito à educação e ao lazer não pode haver tiroteio; e ainda questionar como o Ministério Público vai fazer o trabalho, que nada mais é que colocar freio para que a polícia respeite as leis. 

A situação do Rio de Janeiro, assim como do país, está longe de se enquadrar na exigida por normas, regulamentos, decisões ou recomendações do direito e dos organismos internacionais, como o Protocolo de Minnesota. A ADPF 635 é um passo – e muito importante – para avançarmos na longa trajetória por uma sociedade que rechace a crença de que o único dever do Estado é matar pessoas pretas e pobres. Não é razoável que pouco mais de 3 pessoas a cada 100 mil habitantes tenham sido mortas pelas polícias nos últimos anos; que 17 pessoas tenham sido mortas por dia pelo Estado no país e que esses índices não arrefeceram nos últimos anos – pelo contrário, aumentaram 188,9%. Foram 56.387 pessoas mortas em 10 anos no Brasil pelas polícias, segundo o FBSP. Até quando é possível que isso passe impune? 

A ADPF, sem dúvida, é uma das iniciativas mais centrais que ocorreram nos últimos anos, e a forma como os movimentos sociais de favelas e periferias influenciaram o processo como um todo a partir da figura do amicus curiae é o que a torna mais potente. Afinal, no Brasil, ter que reduzir a força letal e se adequar ao uso progressivo da força – ponto inicial para qualquer democracia – é uma ofensa à maioria dos governadores do país. Ainda falta muito para o Estado cumprir a decisão do STF, mas em um governo em que, a despeito das determinações judiciais, afirma que cidadão morto é dano colateral, não podemos não nos mobilizar, por todas as frentes possíveis, para que esta seja mantida, porque não é possível imaginar o efeito devastador de liberação da barbárie que a queda dessa decisão poderia ter. 

Na quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai retomar o julgamento da ADPF 635. Nesse sentido, a RENAP (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) vem apresentar nosso posicionamento coletivo em defesa da ADPF 635, reiterando que manter o que já foi decidido pelo STF e avançar no sentido do que está sendo requerido é tentar assegurar os últimos limites à força da polícia e frear a política institucionalizada de morte no Brasil. A ADPF mostra que movimentos sociais e organizações em defesa de direitos humanos estão em luta permanente contra a violência perpetrada pelas forças do Estado de forma racista e classista, e em defesa da vida e da dignidade daqueles e daquelas que vivem nas favelas e periferias de nosso país.

Nenhuma vida vale mais que a outra, nenhuma vida deve ser tratada como efeito colateral.

O conteúdo deste artigo não reflete necessariamente a opinião do IBDH.

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