A Cultura do Estupro

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Em primeiro lugar, é preciso falar que o estupro, muito embora seja crime, é, em determinadas situações, socialmente aceito, é naturalizado, é desfocado e até mesmo cultuado… por isso a expressão cultura do estupro.

Num primeiro momento choca pensarmos que existe uma cultura do estupro, seria uma espécie de apologia ao crime? Ou seria uma grande banalização de todos os direitos feministas e do corpo feminino?

A nossa sociedade, ainda hoje, em pleno 2020, continua completamente arraigada aos conceitos do machismo, do patriarcado e, sim, da objetificação feminina. E, desse contexto, nasce o que chamamos de cultura do estupro.

Apenas a título de contextualização histórica, é importante dizer que o termo surgiu na década de 70, durante a segunda onda do feminismo, ou seja, estamos falando de algo com quase cinquenta anos e que até hoje continua desconhecido como terminologia, porém amplamente naturalizado e aceito na sociedade!

Não menos impactante é o dado de que 70% das nossas meninas e mulheres que são estupradas o são em âmbito doméstico, ou seja, no local que elas deveriam ter como porto seguro, o seu próprio lar. E esse estupro vem de alguém muito próximo, um marido, um pai, um irmão, um familiar ou amigo íntimo.

Temos que mencionar também que os dados oficiais mostram que em cerca de 88% dos registros as vítimas são do sexo feminino e em 90% dos casos os agressores são do sexo masculino. O que nos mostra com clareza que os grandes agressores/estupradores são os homens e as vítimas as mulheres.

Uma expressão muito em voga é o “não é não”, o que eu acho completamente triste, pois ter que explicar o básico é um claro desrespeito à vontade da mulher, não é não e sempre foi e sempre será, não deveríamos precisar de campanhas e bordões para dizer o básico! Então por que dizemos? Porque vivemos numa sociedade que naturaliza o não como joguinho de sedução, como forma da mulher “fazer doce”, de “valorizar o passe”… E é importante dizermos que, infelizmente, algumas mulheres fortalecem esse entendimento. Enquanto o não for encarado como joguinho nós não teremos respeito. Temos que, de uma vez por todas, entender que não é negação, é sinal vermelho, é ordem de parada!

Fora essa questão de entendermos e ouvirmos a voz feminina, precisamos falar ainda da objetificação feminina, pois certamente ela é um dos principais fatores dessa triste realidade de estupro.

O que é a objetificação da mulher? Nada mais é do que tratar o corpo feminino e a mulher como mero objeto de prazer masculino; é colocar a mulher num papel de submissão, de algo que está ali para ser apreciado e valorizado pelos seus atributos físicos, como se o corpo feminino fosse um parque de diversões masculino.

Vivemos, desde muito tempo, uma cultura de beleza feminina para a mídia; campanhas são feitas com mulheres seminuas, com mulheres mostrando os atributos físicos e vendendo uma imagem de sex appeal, ou seja, temos um apelo sexual muito grande e forte do corpo feminino, como se ele fosse uma grande isca de atenção ao masculino. O ponto que vai atrair a atenção dos homens não é o conteúdo feminino, mas sim a beleza exterior, a plástica…

E, dentro desse contexto, temos a construção de que o feminino veio para satisfazer o masculino, como um mero objeto de prazer, daí a ideia de objetificação feminina, que infelizmente é tão amplamente difundida nos nossos dias, e das mais diversas maneiras.

A partir do momento que observamos a mulher como objeto, mesmo que seja sem nos darmos conta disso, intensificamos a ideia da cultura do estupro, pois entendemos e naturalizamos a ideia de que o corpo feminino serve para saciar as vontades e desejos do corpo masculino, como se estivéssemos colocando a mulher mais uma vez num papel de total submissão, submissão essa às vontades dos homens.

Outro ponto fundamental na cultura do estupro, que precisamos mencionar, é a questão da culpabilização da vítima.

As vítimas de estupro, em sua maioria, são severamente questionadas, muitos acham que elas são as verdadeiras culpadas da violência que sofreram. Isso gera uma cifra negra aterrorizante, apenas 10% das vítimas de estupro procuram as autoridades para as devidas providências de investigação. E o principal motivo é o medo de ser revitimizada por todo um sistema machista e patriarcal.

Como assim ser revitimizada? A partir do momento que questionamos roupas, uso de álcool e outras drogas, se ela conhecia e dava intimidade para o agressor, entre outros fatores, estamos dividindo com a vítima uma culpa que é exclusiva do agressor. Estamos colocando a mulher vítima no papel de sua própria agressora, estamos dizendo que ela não soube se portar na sociedade e que por isso mereceu ser violentada. Indicamos que seus atos não coadunam com aquilo que a nossa sociedade chama de mulher direita, e que, por conta disso, o estupro aconteceu.

Vocês conseguem entender o tamanho do absurdo que esse pensamento gera? A mulher, que já foi violentada e sofreu uma das piores violências que um ser humano pode sofrer, é tida perante a sociedade e as autoridades como a grande culpada do seu ‘infortúnio’, como se ela tivesse provocado aquela ação. Como se o agressor, diante daquela situação fática, tivesse sido compelido a estuprar, afinal a mulher deu margem e, naquela situação, esse era o papel esperado de um homem.

Pensando sobre esse “papel esperado”, vemos que desde cedo nossa sociedade cria os meninos para serem viris, machos, ativos sexualmente. Deles são esperadas aventuras sexuais, diversidade de parceiras… Os homens são incentivados desde muito cedo a usarem suas conquistas amorosas como troféus, e, quanto mais troféus melhor, como se eles disputassem entre si o lugar de maior garanhão, do macho alfa, do líder da matilha.

Com base nisso criamos homens valorizando em demasiado o sexual, homens que olham para a mulher como a próxima presa, como mais uma para a sua coleção. Assim, mais uma vez reproduzimos a cultura do estupro, pois mantemos a mulher como caça, como objeto a ser alcançado.

Ainda dentro desse contexto, é imperioso falar de uma expressão antiga, e, que muitos entendem como uma carta branca ao sexo dentro do matrimônio, sexo na hora que o homem bem desejar. Estou falando do “débito conjugal”.

Muitas pessoas acreditam que a mulher tem obrigação de manter uma relação sexual sempre que o marido tiver vontade e que a ela não cabe dizer não. E, caso diga, cabe ao marido exercer o seu direito de varão e forçar a relação sexual! Mas que fique claro de uma vez por todas, isso também é estupro, nenhuma mulher, seja casada, solteira ou até mesmo prostituta é obrigada a manter uma relação sexual sem sua vontade!

Relação sexual não consentida, seja ela em qual situação for, é crime, é estupro! O marido não é o dono do corpo da sua mulher e a ele não cabe decidir sozinho quando devem ser as relações do casal! A consensualidade é requisito básico para uma relação sexual saudável e lícita, seja qual for a relação e o vínculos entre os envolvidos.

Cabe ainda falarmos que muitas mulheres sofrem estupros por parte de seus maridos, companheiros, noivos, namorados, e, muitas vezes, nem elas mesmo se dão conta de que aquela relação forçada foi um crime, de que aquele homem se aproveitou de uma situação para forçar um ato sexual que ela não queria! E olha que nem estou falando de embriagues ou estados de inconsciência, estou falando de chantagem emocional ou sexual, além é claro do próprio uso de força física.

Infelizmente não são raros os casos aonde o estupro vem daquela pessoa com quem a vítima mantém um relacionamento amoroso. E, aqui novamente, nós vemos como pano de fundo o sentimento de posse que o homem tem em relação à sua parceira e ao corpo dela, novamente aquela ideia de que o corpo daquela mulher serve para satisfazer todos os seus desejos sexuais, pois ele é o seu homem, o seu dono.

Voltando novamente à questão da culpabilização da vítima, eu lanço um questionamento: Você já se perguntou por que, quando um estupro acontece, muitas pessoas tendem a questionar se a vítima está falando mesmo a verdade? E, que fique claro, isso não é o que acontece com outros tipos de crimes, normalmente todos tendem a acreditar quando alguém diz ter sofrido um roubo, por exemplo. Por que com o estupro é diferente? Por que muitas vezes duvidamos da vítima e a expomos a diversos constrangimentos e ao sentimento de culpa? A resposta é cruel, mas muito clara: porque reproduzimos a todo momento a cultura do estupro, e, assim, muitas vezes entendemos que a vítima foi responsável e que ela mesma se colocou naquela situação, que ela foi quem causou aquele ato.

A essa altura você já deve (assim eu espero) ter se questionado quantas vezes você naturalizou a cultura do estupro, quantas vezes ouviu que a mulher que anda de madrugada na rua com roupas sensuais está pedindo para ser estuprada, e quantas vezes repetiu e concordou com essas afirmações, reproduzindo como verdade absoluta que mulher decente não anda sozinha de madrugada, que mulher decente anda coberta, que mulher decente não fica expondo o corpo, que mulher decente não dança de forma sensual, que mulher decente isso ou aquilo.

Todos nós fomos criados naturalizando o patriarcado e o machismo, naturalizando a prevalência do masculino e colocando o desejo do homem como algo normal, natural e, até mesmo, animal em alguns casos. Dessa maneira, fomos criados subjugando as mulheres.

Passamos a acreditar que o estímulo sexual é muito maior nos homens, que os homens precisam de sexo mais do que as mulheres, que é da natureza masculina a busca pelo prazer sexual. Tudo isso nos foi vendido como verdade, tanto pelos nossos pais como pela sociedade.

Desde muito cedo aprendemos que a menina deve ser pura, recatada e submissa, que dela é esperada uma posição de princesa… E que aquela que se rebela, ou foge desse padrão, não merece o mesmo cuidado da sociedade; ela é tida como vulgar, como uma mulher sem respeito, e, assim, vira uma presa fácil, sexualmente falando.

E aí eu pergunto: onde na ciência está escrito que o sexo para o homem é mais prazeroso e natural do que para as mulheres? Onde está escrito que o desejo do homem é mais forte? Onde está escrito que o desejo do homem é muitas vezes incontrolável?

Não está, isso é fruto de toda uma construção social, uma construção de milênios, de supervalorização do homem e de aceitação dos seus erros.

Com isso eu quero dizer que a cultura do estupro também foi criada pela sociedade. A cultura do estupro nada mais é do que uma supervalorização do homem perante a mulher, do desejo do homem em relação às mulheres, de uma prevalência do masculino diante do feminino.

E, que fique claro, por mais que se fale em naturalização da cultura do estupro, ela não é algo natural, não é algo que nasce com o ser humano. Ela é fruto de toda uma soma de valores deturpados alimentados pela nossa sociedade.

Isso é ruim? Isso é péssimo, pois nos mostra que a cultura do estupro não é da nossa essência, mas sim algo que reproduzimos ao longo dos anos e tornamos como parte de nós, da nossa sociedade…

Mas isso também tem um lado positivo, pois se não é algo intrínseco, natural, é algo que permite mudança, é algo que pode ser extirpado da nossa cultura. Só depende de nós! Até mesmo porque cultura é fruto de cultivo; se pararmos de alimentar, se pararmos de valorizar, ela some, desaparece e passa a fazer parte apenas da história, do passado.

O que quero dizer com isso? Que podemos, sim, mudar essa realidade e que esse é um dos trabalhos que o feminismo vem fazendo. O feminismo vem pregando uma série de desconstruções, e a principal delas é a da questão da supremacia do homem em relação a mulher. A valorização de direitos iguais.

Através da valorização da mulher como sujeito de direitos, e não como mero objeto ou sujeito inferior, nós conseguiremos combater esse mal.

A extirpação da cultura do estupro passa pelo respeito, pelo respeito às mulheres, pelo respeito aos seus direitos e individualidades!

No dia que conseguirmos encarar homens e mulheres como sujeitos com os mesmos direitos, com os mesmos deveres e, acima de tudo, detentores dos mesmos respeitos, não precisaremos reiterar o básico: que as mulheres não merecem ser violentadas, que as mulheres merecem ter sua vida preservada, ter o seu direito de ir e vir plenamente respeitado. Ter todos aqueles direitos, que a nossa Constituição da República estabeleceu, finalmente garantidos, da mesma forma como os homens já os têm desde que o mundo é mundo!

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